Em 2003 o programa norte-americano de makeovers Queer Eye pôs cinco homens gay a transformar o visual de homens hetero. Coisa do passado: a atual versão da Netflix de Queer Eye transforma a vida de qualquer pessoa e está mais preocupada com o que há de único em cada um do que com a falsa oposição entre orientações sexuais.
“se eu me enganar no teu pronome ficas chateado?”, pergunta Tan France, o especialista em moda do Queer Eye, o programa de makeovers criado no início dos anos 2000 e tornado atual pela Netflix. A terceira temporada já estreou e, tal como na original de 2003, da NBC, cinco homens homossexuais transformam o estilo e dão conselhos de sociabilidade aos candidatos. No entanto, ao contrário da primeira versão, o Queer Eye já não é (como anunciava o subtítulo) “for the straight guy [para o homem hétero]”. Agora, este olhar gay e transformador é para todos, sobretudo para os espectadores.
De facto, o programa que nasceu para mudar o aspeto de homens hetero em 2003 está, desde o início de 2018, a mudar homens e mulheres independentemente da sua orientação sexual, pessoas trans, miúdos de 18 e até seniores. O lote de especialistas – os Fab 5 – também está mais diversificado: há um afroamericano e um muçulmano e todos clamam ter histórias bem diferentes, no que toca à sexualidade.
A tal pergunta de Tan France – sobre o uso do pronome – é para o primeiro candidato trans do programa: Skyler acabou de fazer uma cirurgia de transição e responde com a história do seu internamento no hospital onde, apesar da barba e da razão da operação, a equipa médica continuava a referir-se a ele como “ela”.
Tan France está sentado com este ruivo de 30 anos, que parece saído de uma cena de skate dos anos 90 – alerta estilo! – e ouve como isso é doloroso para alguém que passou a vida num corpo carcereiro. “Obrigada por te quereres educar”, acaba por dizer Skyler ao especialista que está neste programa para “ensinar” aos outros o que vestir.
Da realidade trans à relação com a religião, da América de Trump à tensão entre polícia e comunidades afro-americanas, os grandes temas estão na mesa nas três temporadas de Queer Eye na Netflix e as grandes lições não são sobre cortes de cabelo e casacos que favorecem, mas antes sobre a necessidade de cada um se pôr no lugar do outro – é uma das primeiras conclusões da conversa de Karamo Brown, o especialista afro-americano, depois de uma longa viagem de carro com um candidato polícia: começou por ser constrangedor, admite, mas acabaram a notar que, se todos pudessem conversar abertamente, a realidade seria outra. Assim, o programa parece uma aula de formação cívica – e é-o um pouco, mas daquelas aulas de programa bem atualizado.
Afinal, quando Queer Eye apareceu na televisão por cabo norte-americana, em 2003, deu visibilidade a uma comunidade que só era representada na televisão em ficções e não na reality TV. O casamento de pessoas do mesmo sexo era uma miragem pronta para se tornar realidade e David Collins, a mente por trás da ideia, queria mostrar que “homens gay e hétero fazem as coisas de maneira diferente na cama, mas no fim do dia são todos homens”, como disse em entrevista ao New York Times na altura. Na versão da Netflix, esta ideia não é a conclusão, mas a premissa de partida: não parecem existir preconceitos heteronormativos quando um concorrente cinquentão, secretamente apaixonado pela ex-mulher, salta para a cama com os Fab 5 para escolherem um colchão – sem condescendência nem paternalismos – e até elogia o penteado de Jonathan Van Ness, especialista capilar.
A sexualidade seria, na verdade, apenas uma nota de rodapé, caso não fosse a única coisa a unir os Fab 5, como referiu Bobby Berk, o decorador do grupo, à The Atlantic, o ano passado: “Somos só cinco rapazes que por acaso são especialistas nas suas áreas e que por acaso são gay.”
Quando candidatos e especialistas são como amigos a tentarem compreender-se, a ideia de makeover ganha novos contornos: as regras não são estanques, não há ordens de emagrecimento (embora se deem dicas para se parecer mais magro), nem se vai convencer ninguém de que uma tarde à frente da consola é um mau plano.
A palavra queer passa, pois, a significar “diferente”, “particular” ou “único” – o significado original da palavra -, e não simplesmente gay. Aqui os Fab 5 só querem conhecer a pessoa à sua frente e dar-lhe um banho de confiança – com uma conversinha sobre sermos nós mesmos e um bom corte de cabelo.
Fonte: Sábado
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